Por unanimidade, na noite desta quinta-feira, o plenário do
Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a reserva de cotas para negros
e demais afrodescendentes em universidades públicas, ao concluir o julgamento
da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186), ajuizada em 2009
pelo DEM, contra a instituição do sistema de cotas raciais pela Universidade de
Brasília.
No início do julgamento, na quarta-feira, o ministro-relator
Ricardo Lewandowski já tinha rejeitado a arguição, por entender ser “essencial equilibrar
os critérios de seleção à universidade para se dar concreção aos objetivos
maiores da Constituição”, já que o princípio da igualdade “não pode ser
aplicado abstratamente quando é preciso atender aos excluídos”.
O voto de Lewandowski foi acompanhado pelos ministros Luiz
Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Marco Aurélio,
Celso de Mello e Ayres Britto (presidente, e último a votar). O ministro Dias
Toffoli não participou do julgamento. Ele estava impedido, por já ter se
pronunciado a favor das ações afirmativas quando ocupava o cargo de
advogado-geral da União.
Fux
O ministro Luiz Fux — o primeiro a votar na sessão desta
quinta-feira — começou por dizer que a integração étnico-racial na universidade
da comunidade afrodescendente suscita dois sentimentos antagônicos: “receio e orgulho”.
Com relação ao “receio fóbico” de que o sistema de cotas
estimularia o ódio racial, Fux lembrou que ele sempre existiu desde os anos
anteriores à Lei Áurea, quando da Lei do Ventre Livre e da libertação dos
escravos idosos.
Quanto ao orgulho, ele confessou ter um “caso de amor”,
desde 1972, com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a primeira
do país a instituir as cotas para vestibulandos negros, com “um percentual
considerado até desproporcional (40%)”.
Segundo Fux, “a opressão racial dos anos escravocatas deixou
cicatrizes no campo da escolaridade”.
“A abolição da escravidão não seguida de políticas como a
das cotas nas universidades acabou por atribuir ao negro a culpa pelos seus
próprios problemas. Uma coisa é vedar a discriminação racial; outra coisa é implementar
políticas que levem à integração social dos afrodescendentes”, na linha de que
a verdadeira igualdade é tratar desigualmente os desiguais — afirmou.
O ministro destacou ainda: “Uma sociedade justa e solidária,
como exige a Constituição, impõe à sociedade a reparação de danos pretéritos,
perpetrados por nossos antepassados”; “o acesso ao ensino segundo as
capacidades de cada um (artigo 208 da Constituição) impõe uma exegese que não
descure uma interpretação realista da situação dos oriundos da comunidade negra”;
“a política das cotas tende ao princípio da solidariedade, com base em uma política
racial benigna, que não é discriminatória, até por que defende e promove a ‘raça
humana’”.
Rosa Weber
A mais nova ministra da Corte considerou o voto de Fux uma “celebração
da vida”, e assentou que a ação tinha de ser julgada à luz da Constituição, que
consagra o repúdio ao racismo e o direito universal à educação. “Liberdade e
igualdade andam de mãos dadas; para ser livre é preciso ser igual, e para ser
igual é preciso ser livre. Trata-se aqui de igualdade racial, sendo raça uma
construção social. Igualdade formal é a igualdade perante a lei; mas é
igualdade presumível, que não leva em conta situações ou condições concretas.
Não havendo igualdade mínima de possibilidades sociais não há verdadeira
liberdade. É preciso que todos os grupos tenham chances equivalentes. Impõe-se
assim, às vezes, tratamentos desiguais de pessoas formalmente iguais”, afirmou
Rosa Weber.
Ela disse ainda que — mesmo admitindo a tese de que a
ausência de negros nas universidades não é conseqüência de preconceito — 75% da
população é composta de pretos e pardos. Ou seja, “de quem não tem as mesmas
chances do que os brancos, tendo em vista a sua representatividade na pirâmide
social”.
Cármen Lúcia
A ministra Cármen Lúcia resumiu seu voto escrito, destacando
que “a igualdade é o princípio mais repetido na Constituição, mas é muitas
vezes o mais retórico e o mais esquecido na prática”. Distinguiu “igualdade e
igualação”, explicando que “a primeira é estática, enquanto que a igualação é
um processo dinâmico”.
Enfatizou a responsabilidade estatal de fazer com que a
igualação seja efetivada, com base nos princípios fundamentais do artigo 1º da
Constituição. A seu ver, “as ações afirmativas não são a melhor opção, mas
constituem um processo, uma etapa, diante de um quadro de igualdade formal, mas
não de igualação”.
Joaquim Barbosa
O único ministro negro do STF afirmou que nada tinha a
acrescentar ao “excelente e abrangente” voto do ministro-relator, “que esgotou
o tema”. Limitou-se a pontuar alguns aspectos da questão, e a pedir ao
presidente a juntada do seu voto escrito.
Ele comentou ser a discriminação um “componente
indissociável do gênero humano que vem da competição”. E que as ações
afirmativas têm como objetivo “quebrar uma dinâmica perversa”, já que os que
sempre se beneficiaram das discriminações de que são vítimas os grupos
minoritários, naturalmente, a elas se opõem. Acrescentou que “não se deve
perder de vista o fato de que a história universal moderna não registra nenhum
exemplo de nação que tenha se erguido à condição de potência política mantendo,
no plano doméstico, uma política de exclusão”. E concluiu lembrando que já
publicou livro e artigos sobre o tema, “não havendo necessidade para me alongar”.
Cezar Peluso
O ministro Peluso também endossou, com algumas observações,
o voto “deveras extensivo” do relator. Disse que se concentraria apenas no
caráter jurídico constitucional. Ou seja, se o sistema de cotas ofende ou não o
princípio de igualdade consagrado na Constituição.
Segundo ele, o sistema é “um experimento que o Estado
brasileiro está fazendo para resolver o problema da dificuldade de acesso, a de
alguns grupos étnicos à universidade pública”.
Gilmar Mendes
Acompanhou o relator, mas criticou o fato de que o sistema
adotado pela UnB se baseia apenas em critérios étnicos, e defendeu a
necessidade de uma “revisão” do modelo daqui a dois anos, com a adoção de um
novo critério de caráter social. “Aqui (no atual sistema) permite-se uma
possível distorção, ou seja, que pessoas com desenvolvimento educacional
adequado sejam convidadas a trilhar o caminho facilitado das cotas, com ricos
se aproveitando delas, com a perversão do sistema”.
Marco Aurélio
O ministro enfatizou que “os homens não são feitos para as
leis, mas as leis é que são feitas para os homens”. Fez uma análise das
constituições anteriores à de 1988, e frisou que esta, ao enunciar seus “princípios
fundamentais”, empregou verbos “dinâmicos”, e não “estáticos”: “construir uma sociedade
livre e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional” e, finalmente, “promover
o bem de todos”, sem qualquer preconceito de origem, cor ou sexo. Assim,
segundo ele, não basta condenar a discriminação racial, mas “assumir postura
dinâmica” com relação a ela. “Precisamos saldar a dívida de alcançar-se o
tratamento igualitário, chegando-se às ações afirmativas”, afirmou. E
acompanhou o voto do relator.
Celso De Mello
Depois de considerar “histórico” o julgamento, e de elogiar
o voto “primoroso” do ministro Ricardo Lewandowski, o decano do STF fez uma
longa exposição sobre os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil
desde os tempos da I Conferência de Durban (2001) sobre racismo e preconceito
racial, e sublinhou a necessidade da “efetivação concreta, no plano das
realizações materiais, dos compromissos e encargos assumidos pelo país” com
referência à desigualdade social em conseqüência de qualquer tido de
discriminação racial. Ele deu ênfase à “validade” constitucional dos atos
internacionais assinados pelo Estado brasileiro.
Ayres Britto
Ao votar na mesma linha do ministro-relator, o presidente do
STF não deixou de fazer uma série de comentários, a partir do “preâmbulo” da
Constituição, que dá ênfase especial à instituição de um Estado democrático “destinado
a assegurar uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Destacou que
“quem não sofre preconceito de cor já leva enorme vantagem comparativa na escala
social”. E que o princípio fundamental da igualdade está na Constituição,
exatamente, para proteger aqueles que não estão “em igualdade de condições, em
termos de bem estar”, com os socialmente privilegiados.
Ayres Britto também chamou a atenção para o fato de que o
artigo 3º da Carta de 1988, segundo o qual, dentre os “princípios fundamentais”
da República está o de “erradicar a pobreza e a marginalização”. Assim, a
Constituição “legitimou as políticas afirmativas do direito dos seres humanos a
um tratamento igualitário”, a fim de combater a discriminação — que é “dar a
uma pessoa tratamento humilhantemente desigual”.
Voto do relator
Na sessão de quarta-feira, num voto de duas horas, o
ministro Ricardo Lewandowski começou por dizer que estava em questão,
basicamente, “a metodologia da reserva de vagas, que busca reverter o quadro de
desigualdades pretensamente isonômico que caracteriza o quadro atual”.
“O critério de acesso deve levar em conta os objetivos do
preâmbulo da CF, que instituiu ‘um Estado democrático destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a igualdade e a justiça, como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social’” — afirmou.
Assim, ainda segundo ele, é “essencial equilibrar os
critérios de seleção à universidade para se dar concreção aos objetivos maiores
da Constituição”, já que o princípio da igualdade “não pode ser aplicado
abstratamente quando é preciso atender aos excluídos”.
Lewandowski afastou o “conceito biológico de raça”, mas
defendeu o que chamou de “discriminação positiva”, destacando que não se pode
desconsiderar “o reduzido número de negros ou pardos que exercem cargos de
relevo” no país, em consequência da “discriminação camuflada ou implícita ainda
existente à sombra de um Estado complacente”.
O relator — ao rejeitar a ação proposta pelo DEM — afastou
também o argumento de que a “autoidentificação” do candidato a se beneficiar da
cota racial seria inconstitucional. A seu ver, a “identificação por terceiros”
poderia gerar mais problemas do que a empregada pela universidade que, no
entanto, continuaria a ter o poder de “referendar” a “autoidentificação”.
Na
conclusão do seu voto, Lewandowski sublinhou que o sistema de cotas
adotado pela UnB respeita os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, e é “transitório”, pois previu a sua própria revisão
ao fim de 10 anos, se for o caso.
Fonte: Jornal do Brasil
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